Relato matinal


Percebemos o tempo passar quando tomamos consciência de pequenos detalhes que se alteram ao cotidiano, como, por exemplo, só conseguirmos acordar, produzir, e sermos úteis à vida depois de uma boa xícara de café. E olha que há pouco o meu corpo nem tolerava bem a tal cafeína, mas agora urge maiores demandas que as gástricas e os caprichos das escolhas de meu estômago. Por fora, apesar da queda de alguns poucos fios frontais lembrar a quem quiser o meu tempo aqui, sou jovem e solícito. Mas por dentro sinto as mudanças que o tempo traz, e as sequelas de uma vida na cidade grande. Café para acordar, um baseado para dormir. Parece-me que a mente anda mais devagar que o corpo. Ou o tal do relógio privilegie um em detrimento do outro. A verdade é que sinto-me a começar a vida. Sim, porque atraem-me as luzes dos bares, as músicas eletrônicas, os sorrisos brilhantes dos recém-graduados. Mas o tal do tempo me lembra de sua urgência ao passar quando as costas doem, lá pelas duas horas da matina, quando todos ainda estão a dançar. Eis-me aqui como todos os cinquentões que meus amigos e eu tirávamos sarro quando aos vinte. É surpreendente quando descobrimos o que lá no fundo já sabíamos: a vida passa. Mas passa mesmo? O meu eu de outrora concordaria. O meu eu de agora desmente cada palavra dessa frase. Pois cá estou, sem energia, mas tomo o café e ponho-me a trabalhar. Com dores, pois tomo um analgésico e ponho-me a festejar. A vida não passa, continua. O desenrolar da vida adulta faz-nos entender que nós não começamos a tomar remédios para "sobreviver" à senescência, apenas trocamos umas drogas por outras. E com a grande vantagem de saber quando e como usá-las. O fim da vida, tão pouco quanto ao meio em que me encontro, espero, não está nem próximo de ser aquele em que deixamos de sair e nos divertir. Nem mesmo depende disto. Quem disse isto? Quem disse que sobrevive-se à idade? Alguns amigos, conterrâneos de moda, chamam isto de maturidade. Eu costumo chamar de mudança. Mudam-se as urgências, mudam-se as opiniões. Vejo na internet, gerações se abaterem por mudanças. Meus caros, uma coisa que eu aprendi com o meu corpo e a minha mente, ferramentas que me auxiliam a sentir este mundo que habitamos, é que idealizamos um mundo conforme sentimos. E neste contexto de inquietações e complexidades, poucos são os que entendem a jornada do outro. E sabem por quê? Porque ninguém pisa no mesmo lugar do chão que você, nem na mesma época e na mesma direção. Cada um segue um caminho trilhado por si mesmo, às cegas, valendo-se de sentimentos e certezas que não podem se escorar em nada menos do que àquilo que criamos e conseguimos atingir com nosso limitado alcance de visão frente à densa névoa dos caminhos. Estamos todos andando e tateando o chão pra sabermos onde pisar. E com o avanço do caminho, com as mãos e pés já calejados das pedras, escolhemos lugares diferentes para pisar, apenas. Nem mais certos e firmes, nem errados. Alguém, em sã consciência, haveria de achar-se totalmente certo em alguma questão que diz respeito à jornada do outro? Aqui está o que aprendi com o café, talvez você queira incorporar à sua trilha, talvez não. Afinal, esta é mais uma dessas questões que dizem respeito só à minha trajetória: A mente corre atrás do corpo nesta infame disputa temporal, porém o vence em aproveitamento se soubermos guiá-la. Dominá-la. O corpo recorre ao café, que por sua vez, interage com a mente, e os dois transformam a alma rumo à evolução.

(Deyvid Peres)