Coração negro, coração valente



Havia levantado um pouco antes de clarear. Desperto, ninguém além do cachorro Barão que se espreguiçava. Andou até as escadas da cozinha do casarão pelo quintal de terra, limpou os pés antes de entrar e comeu uma banana. Varreu a cozinha com todo cuidado para não fazer barulho e não acordar sinhazinha que estava no quarto mais próximo. Feito isso, pegou o cesto de roupas e se dirigiu ao riacho. 
Castigar as roupas contra as pedras todos os dias era seu fardo. Mal o sol despontara e o suor já escorria pela sua testa. Era bom ver o brilho da estrela batendo nas pedrinhas lá no fundo, e ouvir o barulho da água correr. O trabalho tinha suas compensações. Longe de todos, apenas com a companhia dos passarinhos e dos peixes, era possível se descuidar. Pensar em si e na própria vida, ao menos uma vez ao dia. Naquele momento ela se pertencia, era gente. Gostava de fechar os olhos e mergulhar os pés n’água enquanto ouvia sua respiração e o compasso do coração.
Lembrou da vida, não a própria, mas a que carregava tão veladamente. E alarmou-se ao imaginar o que fariam a ela quando a criança mulata nascesse. Sinhazinha mandaria açoitá-la, ou pior, matariam o pobre miúdo. Coronel ficaria furioso, e descontaria sua revolta no fruto de seu adultério enquanto viverem. Sim, já havia sido alertada sobre isso quando ouvira há tempos histórias parecidas em outras fazendas. Não haveria paz, se é que conhecia o significado dessa palavra além das margens do velho riacho.
Não precisou pensar muito. Decidiu-se, fugiria naquela noite, pra qualquer lugar nas matas onde uma negra poderia viver com sua cria. Sem o estigma da cor de sua pele que não lhe dava o direito à liberdade. Sem troncos de pena, sem visitas noturnas em seu sossego. Haveriam de serem livres, de serem felizes.
(Deyvid Peres)

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