Neuroses de uma noite


Espera! Peguei minha presilha? Onde está minha presilha? “Mãe, você viu minha presilha?!” Ah, não! Tinha combinado a roupa toda com ela. Ah, está na minha cabeça já. “Deixa mãe!” Como sempre estou atrasada, deveria ficar em casa do que ir pra essa festa e perder meu tempo. O máximo que vai acontecer é eu ficar forever alone sozinha, bêbada. Mas eu prometi a Suzana que iria, merda. Eu deveria ter ido com a galera mais cedo, como eu sou burra! “Amanda, o taxi já está buzinando aqui na porta!” “Estou descendo!” Droga de escada! O taxi chegou na hora, raro isso acontecer. Vou chegar lá sozinha, com esse vestido ridículo. Só eu mesma pra escolher um vestido desse. Todo aberto, e esse frio lá fora. Só eu. Mas lá eu tomo umas cachaças e esquento. Será que vai ter bebida quente lá? Como eu sou sortuda só deve ter cerveja. “É aqui, moço, obrigada!” Olha só esse lugar, como é chique! E eu aqui com esse vestido de liquidação. Cadê a galera? Não vieram, só faltava essa! Ah, não, estão ali. “Oi, gente!” “Amandinha, que saudade! Como você está linda, nossa!” “Obrigada!” Ela só está falando isso pra me agradar, mas tudo bem.  Está todo mundo aqui, todos felizes. E que frio, já está começando a serenar. Vou lá pegar uma cerveja pra sentir mais frio. Ih, tem vodka! E agora, o que eu faço? Não sei dançar essas músicas aí. Bom, quem já está na merda, vamos lá pagar o gorila da noite. Tem um garoto me olhando. Agora ele está me olhando e falando com outro, deve estar me zoando. Até que nem demorou muito. Pelo menos estou sendo a diversão de alguém. Vou pegar outra bebida. Deve estar uma fila gigantesca no bar. Não falei? Vou fumar um cigarro lá fora enquanto espero esvaziar. Aqui está mais frio. Que mão é essa no meu ombro? “Oi, tudo bem?” É aquele garoto, veio tirar sarro da minha cara. “Tudo.” “Me empresta o isqueiro? Às vezes a gente tem que dar um tempo da bagunça pra dar uma respirada, né?” “É, verdade.” “Sabe, não pude deixar de reparar como você é linda. Você é única. Está com frio? Deixa eu te emprestar o meu casaco, pronto, melhor?!” “Uhum.” Ele está dando em cima de mim? Deve ser alguma aposta que perdeu. “Eu te vi ali com as suas amigas, e não consegui tirar o olho de você. Desculpa, você deve estar me achando um tarado.” “Não, imagina!” “Bom, mesmo agora não consigo parar de me imaginar te beijando.” Porque ele está me olhando com essa cara? Ele vai me beijar? Ele está me beijando? Pronto, pagou a aposta e vai meter o pé. Ué, ele ainda está aqui. “Quer uma bebida?” “Quero.” “Ok, me espera. Não foge de mim, hein?” A Suzana vem ali. “Amandinha, sua danada, que gatinho! Eu e a Aline estamos no zero a zero ainda. Ele vem lá, tchau!” “Oi, voltei.” Deve ser uma aposta pra noite inteira.

Esse foi o primeiro namorado de Amanda.


(Deyvid Peres)



Itinerários


8 nós, vento a leste. Ao norte via-se o litoral, cada vez mais distante, cinza e empoeirado. A estibordo, olhando pela escotilha, estava Gilda que observava aquela vida que se passava. O porto visto assim de longe, parecia um lugar tranquilo e pacífico. Muito diferente da rotina de carga e descarga de ‘esperanças bélicas’, como ouvia dizer no rádio.  À esquerda, via a igreja que costumava ir todos os domingos, destruída. O campanário estava de pé, mas o sino fora derretido para a produção de balas. Na escada do templo era possível ver uma mulher, sabia que era mulher porque estava de vestido, e um brilho que imaginou ser uma vela. Era triste, mas ao mesmo tempo libertador saber que nunca mais veria aquela cidade. Seu pai decidira vender o que tinham quando um homem veio bater-lhes à porta com oportunidades de empregos nas Américas.  A ‘grande gripe’ já havia não só levado sua irmã, como metade do vilarejo. E os que sobreviviam, ou eram convocados à guerra, ou eram mortos pela fome ou por brigas locais. Estava cada vez mais difícil sobreviver com o pequeno pedaço de terra que tinha em sua aldeia. Nas cidades as pessoas se matavam por empregos árduos e muito pouco remunerados. Ao oeste a imensidão do mar que se perdia e se misturava ao azul do céu e à neblina do crepúsculo vespertino na linha do horizonte. Havia outros como eles naquele navio: uma senhora com seu xale rendado, um par recém-casado, um senhor de boina e seu filho de uns 11 anos, uma menina chamada Sabina que viera se apresentar quando entraram no porão apertado. Uma multidão adoecida, faminta e pouco aquecida que chamavam de ‘terceira classe’. E ao sul, quem sabe, uma vida nova. 

(Deyvid Peres)