Tardes frias


Interessante como as tardes frias de outono são para escrever. Ou talvez sejam para preparar aquela aula de sábado de manhã, ou estudar as estatísticas de um experimento, ou organizar a lista de tarefas para a próxima semana. Dizem que somos o que fazemos no nosso tempo livre, ou o que preferimos fazer em relação às outras coisas. Pergunto-me diariamente se gostar de escrever está em desacordo com ensinar, ou pesquisar. Será que ser escritor é contrário à vontade de ser professor? Será que o fato de preferir escrever sobre um sonho, uma inspiração anotada num pedaço de papel durante uma volta no parque, ou mesmo sobre uma opinião, significa que estou no caminho errado? O que seria dos alunos se eu não tivesse aptidão para a escrita? O que seria da pesquisa se eu não tivesse aptidão para a escrita? O que seria da escrita se eu não tivesse aptidão para ser professor? O que seria da docência se eu não me questionasse, se eu não me expressasse, se eu não pesquisasse, e se eu não lesse ou escrevesse? E, finalmente, o que seria dos meus questionamentos, das minhas aulas, das minhas escritas e dos meus alunos, se não fossem os professores que passaram e que passam por minha vida e formação? Não apenas a formação profissional, mas também aquela que nos prepara para a vida, para sermos nós mesmos. A formação que me permite duvidar e questionar a vida, e o que eu faço dela, em um texto de Facebook. Definitivamente, chego à conclusão que nenhuma profissão está em desacordo com a profissão docente. O professor é o trabalhador curinga, é o que dá alicerce a todos os outros. E cada um de nós exerceu, e exerce um pouco esse papel em determinado assunto. Agora imagine um país em que esta é a profissão menos valorizada. Onde batem e calam à força aqueles que escolheram viver se dedicando a ser o pilar de toda a nação. Hoje é o Dia Internacional do Trabalhador, feriado nacional. Feriado em diversos países do mundo. Todos em casa, viajando, descansando. E eu pergunto: Você sabe o que a maioria dos professores está fazendo? Bem, provavelmente, assim como eu, ela está preparando a aula de sábado, ou corrigindo as provas da semana, ou se lamentando do massacre no Paraná.

(Deyvid Peres)

Água


Era comum que ela fosse, mesmo sem perceber, foco de toda e qualquer atenção nas festas. Seu jeito tímido, seu olhar concentrado, e sua voz baixa não faziam jus a sua beleza imponente. Não que ela fosse a mais bonita do ambiente, mas certamente tinha um charme que conquistava até aqueles que a aborreciam. Dom incomum esse que possuía. Na realidade, em seu interior, não precisava de nada disso. É bem verdade que situações como essas alimentavam o seu ego e atenuavam sua baixa autoestima. Mas não era por isso que se sentia bem. Era por toda gentileza sincera, pelo coração aberto, e energia positiva daqueles que escolhia conviver. Poderia ter qualquer rapaz, mas preferia ter um por vez, ou dois, mas não todos. Preferia ter aqueles que ela pudesse amar de verdade, e eles a ela pelo o que é. Vegetariana por opção levava uma vida que tinha lá seus ideais. Respeitar cada criatura viva no planeta. Dar valor à família. Dar valor àqueles que plantavam sua comida e àqueles que a preparavam, agricultores, padeiros, cozinheiros, sua irmã. Dar valor a cada amor pelo qual era agraciada, e tinha a honra de hospedar. Dar valor à mulher que possuía o ventre que a abrigara durante o processo de chegada a este mundo. Era do tipo de menina que dava importância a essas pequenas coisas. O vento que batia em seu rosto durante os passeios de bicicleta; as montanhas que via de sua janela e a lua que se escondia por trás delas; a semente que brota; a folha que cai; o pássaro que canta enquanto voa à procura de alimento; o barulho da água do chuveiro. E por falar em água, como era linda! Tinha extremo fascínio pelo mineral transparente, pelo modo como oscilava de cor e como a luz se comportava quando ele mudava de estado físico. Um mundo perfeito seria um lugar com as luzes do submerso, do mistério e da calma. Cada molécula de água no seu corpo parecia entrar em sintonia com a vibração daquelas em que se banhava, recarregando-lhe toda a energia vital. Tinha a dádiva de olhar profundamente dentro dos olhos das pessoas e enxergar suas angústias, suas crenças, e a bondade que reinava dentro delas. Ignorava por preferência aquilo que via de ruim, e ao mesmo tempo agia com justiça a qualquer maldade que presenciasse. Vivia em um mundo criado por ela mesma, um mundo onde o amor fosse prioridade. Que santo não a recompensaria devolvendo tudo isso? O universo respondia agraciando-a com uma energia de acolhimento e amor que nenhuma outra pessoa conseguia entender, mas enxergava e sentia. Era o foco nas festas por causa do amor que emanava e refletia, ponto. Era água. 


(Deyvid Peres)