O lado bom


Que engraçado era o modo como ela via a vida. Se caía num buraco, era porque o céu estava mais bonito de olhar. Se era assaltada, era porque o ladrão precisava mais que ela. Se chovia num dia que tinha planejado um piquenique, era porque ficar em casa pra assistir a um filme com a galera seria a melhor escolha. Eu ou você poderíamos chamar de "modo de ver a vida" sim, mas há quem diga que se tratavam de escolhas. Eu a conheci num dia comum, num lugar comum, numa situação comum. Era aula de biologia, e explicavam que o milho fora modificado para o consumo humano ao longo dos anos. Chato. Sua presença passou despercebida até eu ouvir, entre um rabisco e outro na folha de caderno, uma risada com pequenos grunhidos agudos entre as respirações. Como aqueles que os porquinhos vazem, mas misturados com soluço de bebê. O modo como seus olhos eram apertados pelas bochechas, que sustentavam um sorriso largo e feliz, transmitia uma alegria que contrastava com o tédio coletivo da aula. Não tinha tempo ruim. Nem mesmo o milho escapou de ser ridicularizado em prol de uns sorrisos. Mas foi depois de umas doses de vodca, num dia que eu esperava nada mais do que dançar sem me preocupar com a pouca vocação pro esporte, que esbarramos pra conversar. Literalmente. Meus olhos de bêbada, fechados pra ouvir a música, se abriram pro seu sorriso de desculpas. Havia raspado a cabeça, e estava suada do calor de verão, mas seu charme e sorriso eram inconfundíveis. Mais engraçado era o modo como disfarçava suas pequenas inseguranças, perceptíveis apenas quando ficava com vergonha. E que deixavam evidente, a quem fosse vivo o suficiente, que era de escolhas de que vivia. Sentia a dor, o tédio, e a tristeza como todo mundo. Mas preferia viver por outro caminho. Dentre suas escolhas, uma delas não foi eu, nunca mais a vi. Mas uma lição eu aprendi com ela, se não ficamos juntas é porque uma menina melhor vai aparecer pra mim.

(Deyvid Peres)

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