Sobre essa profissão que chamam de professor



Antes de sair de casa, Dona Maria, mãe da menina, colocou na mochila o pedido da tia do primeiro ano: Um pote de geleia usado e um chumaço de algodão; Curioso. Na casa de Adelaide não havia uma planta se quer. Nunca acompanhara um vegetal crescer. Nunca havia pensado sobre como as plantas crescem, de onde as árvores vinham. Na ingenuidade de seus cinco anos, a natureza existia e pronto. As florestas sempre estiveram lá e, sempre estariam. As plantas deveriam crescer por conta própria. Mas a professora tinha um plano, a famosa experiência do feijão no algodão úmido. Na escola, sem explicar nada sobre o que iria acontecer e previamente alertado aos pais para que não entregassem o jogo, a professora explicou como seria a atividade. Vinte carinhas confusas e desinteressadas fitavam-na. Colocaram o algodão ao fundo do pote, o molharam com a ajuda de um borrifador, e repousaram suavemente o grão sobre a almofada branca. A tia havia explicado que os potes ficariam na sala de aula. Era dever de cada criança irrigar um pouquinho o seu feijão todos os dias antes da aula começar. E a cada dia eles diriam o que estava acontecendo. Ao fim da semana eles levariam o potinho para casa e discutiriam o que aconteceu com a família. Adelaide fez tudo como orientado, e como todos não mostrou muito empenho. No primeiro dia, antes da aula, cada criança recebeu um pouquinho de água a fim de regar os potinhos. Nada havia acontecido, assim como no segundo dia. No terceiro um pequeno toquinho saíra da semente em direção ao algodão. Adelaide ficara emocionada, ansiosa. A partir daí, contava as horas para ir à aula e ver como estava o feijão. No quarto dia a raiz tinha crescido um pouco mais, e no quinto conseguia ver que uma coisa verde havia aparecido. Mas foi no sexto dia que Adelaide entrou em êxtase. A semente, que agora trazia um pequeno pedúnculo, se abrira ao meio para dar espaço a duas folhinhas ainda dobradas. Era dia de levar a plantinha pra casa, e a tia já havia passado uma atividade para que as crianças desenhassem o que viram naquela semana. Ao chegar a casa, a primeira coisa que fez foi mostrar a sua mãe o sucesso de seu trabalho:

-Olha, mamãe, como cresceu!
-Que linda, filha, o que você fez para ela crescer assim tão rápido?
-Dei água e amor.



(Deyvid Peres) 

Travesti


Medo. O medo é o mal da humanidade. Entre um soco e outro, lembro dos rostos dos garotos que me batiam na saída da escola. Meu rímel escorria junto às lagrimas de humilhação. É preciso muita coragem pra ser o que se quer ser. Ou melhor, ser o que se é de verdade. A primeira vez que eu senti o medo que as pessoas têm pelo diferente foi dentro de casa. Meu pai tirou minhas vestes femininas à cintadas. Quebrei o salto do sapato da minha mãe tentando fugir. Aos 12 saí de casa. Voltei uma semana depois, atendendo as lágrimas de uma mãe preocupada. Aguentei até completar o ensino médio. Tive sorte, muitas vão parar nas ruas sem qualquer pedido de retorno. O medo fez parte da minha vida o tempo todo. No colégio eu era rejeitada. Obrigada a me comportar como menino. Rechaçada pelos colegas. Meus pais não compareciam as reuniões de colégio que eram marcadas todas as vezes que me tiravam sangue da boca. Nas ruas me tratavam como indigente. Alguém que ninguém quer amar. O resultado da falta de amor e cuidado. Quando na verdade, o modo como me viam era o resultado da falta de amor. Uma das minhas costelas dói muito a essa altura. Já havia desmaiado duas vezes. E no chão, os chutes são mais convidativos. Algo está errado porque uma imensa pressão no peito me impede de continuar a gritar. Lembro-me da minha primeira entrevista de emprego. Estava tão nervosa que não conseguia respirar. Meu antigo nome foi chamado. Gostaria que tivesse sido Andreia, mas já estava feliz por estar concorrendo à vaga. Entrei na sala. O homem engravatado na mesa me olhou dos pés à cabeça, uma cara de desprezo. Fez-me uma única pergunta: Você é o André? E disse que eu não tinha o perfil da empresa. Saí enfurecida, que se fodem! Chorei uma noite inteira. Com a visão já um pouco turva, ouço risos de vitória. Vitória... Vitória do medo. Se me conhecessem veriam que sou uma mulher como outra qualquer. Que sonha, que batalha. Por sorte, alguém vem ao meu socorro. Uma senhora. Deveria estar passando pela rua. Ou será que assistiu a tudo até o final? Minha noção de tempo já não é tão confiável. Acordo na maca de um hospital público. Uma enfermeira me examina com olhos de pena. Ela sabe que esse não será o último ataque do medo.

(Deyvid Peres)