O Não-Eu


Olho os outros passarinhos por aí e penso: serei eu um passarinho mesmo? Todos que vejo, lindos, alegres, coloridos, habilidosos em capturar o alimento, e eu.... Bem, eu mal sobrevivo. Outro dia quase consegui pegar um verme num lago raso, mas meu bico ficou preso na lama. Fui salvo por uma garça que me olhava com cara de dó. Tentei comer insetos, mas confundi um delicioso gafanhoto com um louva-deus, que me deu um soco no olho. Cai humilhado no chão bem ao lado de uma árvore cheia de maritacas. Até hoje elas zombam de mim quando me veem rindo tanto que os outros pássaros até tampam os ouvidos por causa dos gritos estridentes. Resolvi então que só comeria frutas, conheci outros frugívoros, me apaixonei. Olha, as frutas eram ótimas, não reclamo, mas não era o suficiente. O namoro não durou muito, a minha melhor qualidade ali, pelo visto, era comer frutos. Hoje, apesar de ser um pouco pequeno, trabalho como "pombo-correio", preciso pegar pelo alimento que não consigo pegar sozinho, certo? Todos os dias o vasilhame é enchido por uma criatura sem penas, coberta com algodão. Às vezes ela vem diferente, em outras cores e outros formatos, mas sempre vem e me paga. Talvez os ninhos bem feitos, nas árvores mais disputadas, não sejam para mim. Talvez eu não seja um pássaro de verdade, talvez eu tenha nascido na espécie errada. Certa manhã me peguei pensando que se eu tivesse nascido uma toupeira, eu teria um par, e uma toca, e filhos. As toupeiras enxergam pouco e vivem bem. O amor certamente me acharia lá. Mas o jeito é viver aqui, e ser o melhor pássaro que eu puder ser. Por enquanto, sigo entregando cartas de amor.

(Deyvid Peres)

Nenhum comentário:

Postar um comentário