Como posso explicar
a você o que sentia naquela ocasião? Vejamos... Era 1904, minha mãe saía todo dia de casa para entregar as roupas lavadas do dia às
madames de Copacabana e, trazer as sujas. Eu, como de costume, bordava os panos de mesa pra vender
na feira. A vida no morro era boa, as pessoas se cumprimentavam, lembro-me de
uma vizinhança sorridente apesar da situação precária e a falta de estrutura que
vivíamos. Tudo era aceito, desde que viesse para o bem. Ao fim da ladeira
estava a Igreja Nossa Senhora do Livramento, e atrás da casinha que morávamos funcionava um centro de umbanda. Havia pessoas de todos os cantos: Toninho, de
Salvador; Dona Alberta, de Três Corações; Seu Jorge, Joaquina, e o pequeno
Zinho, recém-libertos de um engenho pros lados da Cidade Nova; Dona Leonor, seu
marido Zé da Pinga e sua filha Lurdinha, da Paraíba. Seu Antônio, português de Trás-os-Montes.
Minha mãe Maria José, Zezé para quem já a conhecia dos tempos da escravidão, e
eu, nascida livre, Beatriz. Nome dado em homenagem à antiga sinhá de mamãe. Em meio
ao caos das obras de alargamento das avenidas e da modernização do transporte,
as pessoas tentavam levar uma vida normal. O morro acolhia cada vez mais gente
no processo, talvez, isso explicasse o ar de solidariedade e revolta que
vivíamos. Pessoas que ficavam sem lar pra dar lugar às calcadas largas e
arborizadas. Só via a cidade em expansão aos domingos, quando íamos à missa e
vendíamos meus panos no comércio da feira da Carioca. Havia um rapaz que sempre
ia me visitar, comprava um pano ou dois no início, mas ao final levava-me
flores e cartas. Foi meu primeiro e único namorado, Paulo. Passamos maus
bocados. Ele como jovem de classe abastarda e eu como moça pobre filha de
lavadeira, já sofríamos as mais sórdidas resistências. Mas nada comparado ao
absurdo que era naquela época um homem branco casar-se com uma mulher negra. Ele
fora deserdado e parara de falar com o pai. Fomos morar numa casinha que
construímos com nosso suor de trabalho, ao lado da minha mãe, no morro onde cresci.
E mesmo já estruturados com Rafael, nosso primeiro filho nascido, e os dois
pertencentes à mesma classe social, víamos olhares e comentários maldosos
quando andávamos pelas ruas. Eu não aprendi a ler como queria, mas trabalhamos duro
para sustentar e criar dois homens de bem. Você e o seu irmão. E o que eu
sentia? Sentia medo, revolta, sentia-me humilhada, ignorada, rechaçada,
sentia-me como se não fosse gente. Tudo por crenças idiotas de uma época
diferente desta, que também sustenta suas próprias crenças idiotas. Hoje, meu
filho, sinto que a batalha que vivi ainda existe, mas o mostro que a alimentava
passou a alimentar outros conflitos. Hoje sei que a luta continua, sempre
haverá uma luta enquanto houver a intolerância. Mas sempre haverá quem ganhe,
sempre haverá quem acredite no amor. Coragem. A vida é um ciclo. Um dia você e
seu namorado andarão nas ruas de mãos dadas como qualquer outro casal, enquanto
outros estarão lutando pelo amor em outras batalhas.
(Deyvid Peres)
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