O lado bom


Que engraçado era o modo como ela via a vida. Se caía num buraco, era porque o céu estava mais bonito de olhar. Se era assaltada, era porque o ladrão precisava mais que ela. Se chovia num dia que tinha planejado um piquenique, era porque ficar em casa pra assistir a um filme com a galera seria a melhor escolha. Eu ou você poderíamos chamar de "modo de ver a vida" sim, mas há quem diga que se tratavam de escolhas. Eu a conheci num dia comum, num lugar comum, numa situação comum. Era aula de biologia, e explicavam que o milho fora modificado para o consumo humano ao longo dos anos. Chato. Sua presença passou despercebida até eu ouvir, entre um rabisco e outro na folha de caderno, uma risada com pequenos grunhidos agudos entre as respirações. Como aqueles que os porquinhos vazem, mas misturados com soluço de bebê. O modo como seus olhos eram apertados pelas bochechas, que sustentavam um sorriso largo e feliz, transmitia uma alegria que contrastava com o tédio coletivo da aula. Não tinha tempo ruim. Nem mesmo o milho escapou de ser ridicularizado em prol de uns sorrisos. Mas foi depois de umas doses de vodca, num dia que eu esperava nada mais do que dançar sem me preocupar com a pouca vocação pro esporte, que esbarramos pra conversar. Literalmente. Meus olhos de bêbada, fechados pra ouvir a música, se abriram pro seu sorriso de desculpas. Havia raspado a cabeça, e estava suada do calor de verão, mas seu charme e sorriso eram inconfundíveis. Mais engraçado era o modo como disfarçava suas pequenas inseguranças, perceptíveis apenas quando ficava com vergonha. E que deixavam evidente, a quem fosse vivo o suficiente, que era de escolhas de que vivia. Sentia a dor, o tédio, e a tristeza como todo mundo. Mas preferia viver por outro caminho. Dentre suas escolhas, uma delas não foi eu, nunca mais a vi. Mas uma lição eu aprendi com ela, se não ficamos juntas é porque uma menina melhor vai aparecer pra mim.

(Deyvid Peres)

A garota mais feliz


Ele é daquelas pessoas que te encaram nos olhos, como se te comessem por inteira em segundos. Não posso negar que gosto disso. O jeito como o sol reflete em seu rosto, revelando o mel esverdeado de seus olhos e os reflexos dourados no cabelo me deixam nervosa. Acho um tesão quando ele me compreende, entende o que eu digo e o que eu respondo aos seus olhares. Isso dá a ele um certo ar de mistério e inteligência que eu adoro. Mas como toda garota comportada, e orgulhosa, me abstenho de deixar transparecer isso. Pelo menos tento. Confesso que uma vez em seus braços qualquer tentativa de disfarce vai por água a baixo, junto com a minha vergonha na cara. Acho que o prazer tem um laço com o divino que não podemos negar. O jeito como ele me pega as costas com mãos firmes, e o roçar de barba em meu colo nu, me levam à Andrômeda. É inevitável que eu me sinta uma piranha quando estou com ele. E ele age como se eu fosse mesmo. Suja, vadia. Isso não me ofende, pelo contrário. Mas nego até a morte de que é isso que eu gosto. Nego a qualquer um. O pior é que ele sabe disso. Entrego-me totalmente a ele como uma viciada se entrega ao vício. Aquela história batida de que o tempo passa mais rápido quando estamos com quem gostamos não faz nenhum sentido aqui. O tempo passa, mas passa gostoso. Gosto de seus beijos leves em meus braços, da pressa com que tira minha roupa. E o modo como arranca minha calcinha nova sem reparar nas rendas que a contornam, e que eu escolhi tão cuidadosamente. Gosto do seu porte de atleta, do modo como me levanta com facilidade. Gosto do cheiro amadeirado de seu cangote. Do modo como dirige, e do suor que brota sempre primeiro em suas têmporas. Gosto até quando eu quero sair de casa, e ele com seu sono infinito, me arrasta de novo pra cama com um abraço afável. Mas os seus olhares... Às vezes, sozinha, penso se o que mais me faz assim talvez não seja o mistério que ele institui ao falar pouco de si. Deixando espaço para que eu complete as páginas em branco com as minhas vãs expectativas. Mas quando estamos juntos, só existe o presente. Só existe o fato tangível de estar com ele. Afinal, garotas como eu são proibidas de criar expectativas. Então me visto do meu papel quando ele entra em cena. Até o teatro acabar, serei a puta mais feliz do mundo.


(Deyvid Peres)







A oração de ano novo



Bárbara havia chegado à praia bem cedo aquele ano e as flores de Iemanjá ainda eram trazidas e levadas pelas ondas. Alguns grupos remanescentes comemoravam a passagem de ano novo, bêbados e felizes. Subiu a pedra para ver as baratinhas-da-praia correrem, como era divertido! No horizonte o sol reinava vermelho, tingindo o céu de rosa. Os pássaros já festejavam nas árvores. Descendo, dirigiu-se para seu cantinho secreto, um pequeno espaço de areia por entre duas pedras grandes que davam vista para o mar. Era habitual, sentava-se à beira da água, de costas para o rochedo, todo primeiro de janeiro. Mexia os dedos do pé bem devagar sentindo a areia correr até enterrá-los. Fechava os olhos e notava o vento acariciar-lhe os fios do cabelo, enquanto o sol beijava-lhe o rosto. Mentalizava coisas boas e positivas. Gostava de pensar nas pessoas de que amava unidas e em paz. Pensava na família, na melhora de sua avó. Pensava em ver sua mãe feliz e sorrindo ao lado de seu pai. Pensava em Luíza, sua melhor amiga, sendo forte para aguentar a separação de seus pais. Lembrava-se dos moradores de rua e desejava-lhes que este ano sentissem menos fome do que o anterior. Não esquecia até de Kika, sua cadela, e pensava nela correndo pelo gramado do Aterro do Flamengo. Lembrava-se de si também, e imaginava-se feliz. Pedia aos céus por um amor que lhe fizesse sentir em júbilo. Sua avó sempre lhe dizia que amor de verdade é o que tira-nos do nosso equilíbrio para colocar-nos no prumo certo. Agora o sol cobria toda a pedra, e o calor que ela irradiava avisava-a que o tempo passara. O astro rei estava lá em cima no céu, e o vento mudara de direção. Levantou-se lentamente, contornou a borda estreita por onde as ondas batiam, chegou à área de banho, e molhou os pés. A água estava quente e convidativa. Quem a visse ali na praia acharia que era mais uma jovem a mergulhar. Pediu licença, e imergiu. O que para os outros era um mergulho, para ela era uma benção de renovação. O seu jeito de dizer “Feliz Ano Novo!”.


(Deyvid Peres)